“Ele soca postes de montão e insiste que vê assombração!”
Desde que li Christine, andava evitando os livros de Stephen King, que tem boas idéias e uma narrativa interessante, mas é um autor do tipo que, se for escrever uma lista de compras semanais para levar ao supermercado, precisará de umas oito folhas! Christine, em um determinado momento, virou um desafio: a sensação incômoda de que páginas (e horas de leitura!) foram desperdiçadas em personagens ou acontecimentos desinteressantes que, no fim das contas, pouco ou nenhum impacto tiveram na trama principal.
Claro que eu não pude deixar de pensar que um pouco desta dificuldade se deveu ao fato de ser um fã da adaptação para o cinema feita em 1983 por John Carpenter (que, nos anos 90, passava acho que quinzenalmente no SBT). Provavelmente, o conhecimento prévio da trama tenha estragado um pouco a experiência. Tanto que curti muito mais ler O Iluminado, ao ponto de, até hoje, nunca ter assistido o filme de 1980, dirigido por Stanley Kubrick e estrelado por Jack Nicholson. E muito menos a mini-série de 1997 (que dizem ser muito mais fiel ao livro).
Bom, aí veio uma nova adaptação para o formato live action de uma das mais conhecidas obras de King: It – A Coisa. Como eu nunca vi nem este filme, nem a série de TV dos anos 90, achei uma boa oportunidade para, mais uma vez, conhecer uma história do cara no original, com uma experiência prévia beirando o zero. Aí foi esperar um bom desconto e, quando finalmente o tijolaço chegou às minhas mãos, começar a ler.

No livro, seis pessoas são convocadas para retornar a Derry, uma cidade em que viveram durante uma parte de suas infâncias, por um sétimo elemento que havia permanecido no município a fim de monitorar o ressurgimento de acontecimentos bizarros envolvendo figuras estranhas, principalmente um assustador palhaço. Estes sete, que formavam quando garotos o Clube dos Otários (Losers Club, no original), haviam enfrentado, de forma inconclusiva, uma estranha criatura com poderes metamórficos que assassinava crianças e adolescentes para se alimentar com partes de seus corpos, firmando um pacto para se reunir novamente caso ela voltasse a atacar!

O autor adota uma narrativa não-linear, alternando entre os anos de 1958 e 1985, usando para isso um pequeno truque: os seis que saíram de Derry não se lembram muito bem da cidade, do confronto com a Coisa nem uns dos outros. Assim, o leitor vai sendo informado de acontecimentos anteriores ao mesmo tempo em que estes personagens, já adultos, vão aos poucos se lembrando dos mesmos.

Além disso, como uma forma de dar uma oportunidade para o leitor “tomar fôlego”, King escreveu cinco “interlúdios”, onde Michael Hanlon, o integrante do Clube que ficou na cidade, narra suas investigações sobre a Coisa, cuja história parece se confundir com a da própria Derry. É daí que descobrimos, por exemplo, que ela sempre aparece num período de mais ou menos vinte e sete anos e que exerce um influência nefasta sobre as cidade e seus habitantes, levando-os em alguns momentos a cometerem atos sangrentos. Aliás, a descrição de alguns destes “surtos” de violência que afeta Derry de tempos em tempos termina sendo uma das melhores coisas do livro.
“Elas eram os verdadeiros fantasmas que vimos naquela noite, nada além de espectros no formato de homens e mulheres naquele incêndio, andando em direção à abertura que Trev abriu com o caminhão do sargento Wilson. Algumas estavam com os braços esticados, como se esperassem que alguém as salvasse. Outras simplesmente andavam, mas não pareciam chegar a lugar nenhum. As roupas estavam em chamas. Os rostos estavam derretendo. E, uma após a outra, elas caíram, e você de repente não as via mais.” – Dick Hanlon, pai de Mike, descrevendo o incêndio de Black Spot, uma das tragédias que marcaram a história de Derry –
Há quem diga que o grande mote do livro é a amizade. Eu discordo. Sim, a união faz a força e o Clube dos Otários tem papel fundamental no confronto com a Coisa, mas aos poucos descobrimos que há algo… superior agindo, como se estivesse recrutando aquelas sete crianças, fazendo com que se conheçam, se conectem e passem a agir juntas com o propósito único de enfrentar a criatura. Tanto que, uma vez afastados, eles sequer conseguem manter vivas as lembranças uns dos outros. Da forma como vejo, são pessoas forçadas a uma missão que, uma vez realizada, não sentem uma conexão real entre si. E a exceção que surge (um casal que talvez se forme depois de saírem da história) está ali apenas para comprovar a regra, pois é baseado em uma atração que já existia antes da formação do Clube.

Talvez as pessoas levem tão em conta o lance da amizade porque é quando estão juntos – seja a turma toda, ou em dupla, trio, quarteto… – que os personagens principais realmente ganham uma melhor dinâmica, sendo bem mais interessantes quando interagem e dialogam entre si. Os capítulos em que estão sozinhos me pareceram modorrentos, com seus intermináveis “diálogos internos” (narrados em terceira pessoa, normalmente), e arrastados, mesmo quando cheios de acontecimentos. O embate entre Stanley Uris e a Coisa, por exemplo, que é importante para entender a reação extrema que o mesmo toma ao ser convocado para honrar o pacto firmado na infância, foi uma das partes difíceis de superar, apesar de toda a vontade que eu tinha de saber o que tinha acontecido.
“Mas uma coisa estranha aconteceu; uma coisa terrível, na verdade. Os olhos de Eddie pareceram… crescer de alguma forma. As manchas cinza neles pareciam estar se deslocando, como nuvens de tempestade em movimento. Ela percebeu de repente que ele não estava ‘fazendo bico’ nem ‘chateado’ nem nada disso. Ele estava furioso com ela… e Sonia ficou com medo, porque alguma coisa além de seu filho parecia estar no quarto.”
Para mim, It – A Coisa não chega a ser propriamente um livro de terror, se considerarmos “terror” como a sensação incômoda que precede um acontecimento. O escritor parece mais interessado em mostrar o que existe de podre por trás das expressões amigáveis ou austeras dos habitantes de Derry (que poderia ser qualquer cidade pequena de qualquer lugar dos EUA): pedofilia, incesto, abuso infantil, bullying, preconceito sexual, violência doméstica, dependência emocional, racismo, psicopatia, ganância… Assim, temos muitas passagens de “horror”, aceitando “horror” como a sensação de nojo que nos assalta após sermos expostos a uma experiência. O próprio King exagera em alguns momentos no lance da amizade das crianças e na forma como elas formam seus pactos e vencem obstáculos na luta contra a criatura, criando passagens que podem ser consideradas constrangedoras. Confesso que há dois momentos que me fizeram até largar a leitura por alguns dias: o primeiro envolve um bebê e seu irmão de cinco anos, e o outro… Bom, só posso dizer que é uma cena que nunca foi adaptada nas outras mídias e que dificilmente um escritor teria coragem de colocar no papel hoje em dia. E nem falei da parada em que, tentando imitar um antigo ritual indígena, os garotos se trancam em um local e enchem o mesmo de fumaça (!) para que a mesma desperte visões (!!) em suas mentes.
Infelizmente, It – A Coisa tem os mesmos problemas que localizei em Christine, embora seja, no geral, um livro muito melhor. O primeiro são as descrições arrastadas, principalmente quando temos capítulos com personagens em “solo”, com seus intermináveis monólogos íntimos. Entendo a ânsia do escritor de deixar muito claro o que pretendia em cada passagem, mas começa a ficar chato depois de um tempo ver definições do tipo “pupilas pretas, cada uma do tamanho de uma bola de softball” em vez de “grandes pupilas negras”, simplesmente. A forma como, na ilustração de algumas cenas, ele desce a detalhes ínfimos, mostrados de forma desordenada (por normalmente serem lembranças esquecidas que vão surgindo atabalhoadamente na mente dos protagonistas ou coadjuvantes), enjoa depois de algumas centenas de páginas.
“nada mau, filho, mas eu terminaria com tudo agora; não deixe que a Coisa fuja, a energia tem uma forma de se dissipar, você sabe;o que pode ser feito quando você tem 11 anos nem sempre pode ser feito de novo.” – Maturin –
Outro porém está na não pequena cota de personagens secundários que ganham um destaque desnecessário, com tramas sem importância que se arrastam de lugar nenhum para chegar a nenhum lugar. Não tem como você não se sentir ludibriado: o principal exemplo é o sujeito que serve apenas para levar a esposa de Bill até o esgoto onde vive a Coisa. Ele reaparece na história depois de um bom tempo, quando pensávamos que já tinha cumprido sua função, ganha imensos capítulos descrevendo suas menores ações e terríveis intenções e… sequer somos agraciados com sua única ação de relevância mediana para a trama (o que, convenhamos, a própria criatura poderia ter feito sem precisar da ajuda dele).
Um terceiro ponto que pode influenciar negativamente na apreciação do livro são os diversos conceitos malucos que King vai jogando no leitor, sem muita explicação. Mas, como disse para um amigo meu, acho covardia criticar isso se você se diz fã de caras como o Grant Morrison, que adoram te fazer interromper a leitura de suas histórias para ir ao Google pesquisar as coisas que simplesmente jogam nas suas páginas. Aliás, é bem mais fácil entender as ideias do Stephen King…

O fim pode ser considerado compensador depois de tanto esforço. A mesma fraqueza que torna as crianças as vítimas preferenciais da Coisa revela-se a grande arma para poder enfrentá-la. Num paralelo bem traçado, o monstro de Derry seria apenas mais um valentão, que perde boa parte da sua força quando se está junto dos amigos, tirando e dando a eles a coragem necessária para encará-lo. E é esta reconexão com a infância que os membros do Clube dos Otários precisam alcançar novamente no seu reencontro com a criatura, superando as seguranças e inseguranças, certezas e incertezas da vida adulta. Principalmente Bill, que tem que extrair da época em que era inocente os poderes necessários para salvar a mulher que ama.
“Você não precisa olhar pra trás pra ver essas crianças; parte de sua mente vai vê-las para sempre, vai viver com elas para sempre, vai amar com elas para sempre. Elas não são necessariamente a melhor parte de você, mas já foram o depósito de tudo que você poderia se tornar.”
No mais, a edição da Suma de Letras está ok, com um trabalho competente de tradução, uma boa (mas não perfeita) revisão e uma capa fantástica (de papel cartonado, deveria ter abas maiores). O papel amarelado está na gramatura certa para não atrapalhar a leitura nem tornar por demais incômodo levar o livro consigo na mão ou mochila.
