Adaptando a obra de Neil Gaiman para os quadrinhos. E um pouco de Titãs!
Em 1996, a BBC2 levou ao ar uma série com o título Neverwhere. Chamando a atenção, o roteirista, nada menos que o senhor Neil Sandman Gaiman. Após três episódios terem ido ao ar, chegou às bancas o livro com o mesmo nome que traduzia o roteiro para o formato e serviu como forma do escritor expandir as idéias que restrições orçamentárias ou decisões de produção impediram que fossem melhor exploradas na televisão. Hoje a obra em prosa é ainda festejada, enquanto a série televisiva não passa de uma mera curiosidade (disponível no Youtube).
Indo ao que interessa, em junho de 2005 começou a ser publicada a adaptação para os quadrinhos do livro. Sob a supervisão do próprio Gaiman, o roteirista Mike Carey e o desenhista Glenn Fabry conseguiram, na opinião de algumas pessoas cuja opinião eu considero (particularmente, nunca li o livro para julgar), o difícil “faz melhor”.

Na trama, acompanhamos Richard Mayhew, o dito cidadão comum, que vive sua rotina resignadamente, até o dia em que depara com uma moça de trajes exóticos ferida na calçada. Contrariando a noiva que o acompanhava (e o deixa lá, plantado na calçada com a garota nos braços), ele leva a menina para seu próprio apartamento e trata de seus machucados.

Enquanto questiona a sanidade da jovem (ele a vê mandando uma mensagem por um pombo, não amarrando um bilhete na pata da ave mas a ditando para o mesmo), Richard fica assustado com a visita dos intimidadores Croup e Vandemar. Eles procuram a moça, chamada Porta, mas não a encontram, mesmo revistando o quarto onde o rapaz a deixara. Ela reaparece (vindo do quarto) e pede um último favor a Mayhew: encontrar o Marquês de Carabás e lhe entregar um anel com o selo real do Clã Pórtico, para que o mesmo venha a seu serviço. O encontro com o misterioso personagem termina levando o rapaz a conhecer a Londres Abaixo, uma cidade que existe sob a capital inglesa, dividida em feudos e cheia de estranhas criaturas e magia. É lá que, mesmo contra a vontade, Richard participará da jornada de Porta e do Marquês para descobrir quem mandou assassinar a família da garota. Uma jornada que inclui o encontro com um andrógino anjo – isso mesmo – e o confronto com a Besta-Fera de Londres!

Mike Carey não é um roteirista incompetente. E, claro, não deve ter problema nenhum em trabalhar com elementos criados por Neil Gaiman, já que fez isso por anos escrevendo títulos relacionados aos personagens que o colega bem mais famoso criou durante seus anos de trabalho para o selo Vertigo. Mas é fácil perceber o “estilo” de Gaiman, a forma como o estranho se mistura com naturalidade ao comum. Estou falando de coisas como a corte de um Conde que cabe dentro de de um vagão do metrô e de mercados que podem acontecer em qualquer lugar, inclusive dentro da famosa Harrod’s ou no convés de um navio de guerra, entre outras coisas. Tudo temperado pelo talento de Gaiman para brincar com o nome de locais reais, espelhando-os na sua Londres Abaixo – enquanto na cidade “acima” existe uma Knight’s Bridge, por exemplo, na outra temos a Night’s Bridge – e para construir personagens que despertam a curiosidade do leitor, sabendo cativar ou instigar. Também – outra marca de Neil – temos a sensação de excesso: acontecimentos são narrados, informações são dadas e personagens são apresentados sem que acrescentem coisa alguma à história em si. Mesmo assim, Lugar Nenhum não se torna uma trama arrastada e um pouco cansativa – como é, por exemplo, Deuses Americanos e Um Jogo de Você (um dos arcos de Sandman). Não sei – pois, como disse, nunca li o livro – se aqui o mérito é de Carey.

Glenn Fabry trabalha de forma competente, transitando com maestria na construção de cenários e dando uma “cara” aos diversos personagens. Sua composição, sua narrativa e seu traço se adequam perfeitamente ao clima do roteiro, embora eu tenha visto algumas críticas no tocante aos figurinos que ele desenhou para alguns personagens, principalmente Porta. Particularmente, gosto do seu trabalho como quadrinhista – bem mais do que como capista, onde o considero apenas regular – e não vi nenhum problema relevante no que fez aqui.

Uma das coisas que me faz gostar demais de alguns roteiristas britânicos é que eles levantam questões interessantes dentro da história, sem necessariamente colocá-las na “frente do palco”. Warren Ellis faz isso muito bem. Alan Moore fazia, com competência. Grant Morrison tenta. Neil Gaiman também gosta. O que mais me chamou a atenção na história aqui analisada foi o objetivo buscado pelo Richard: voltar à Londres Acima. Sim, porque depois que adentrou à cidade subterrânea, ele descobriu que – assim como os demais habitantes da Londres Abaixo – foi literalmente apagado da existência na sua cidade de origem. Ele não tem mais emprego, casa ou mesmo noiva. Ninguém lembra dele, escuta quando ele fala ou mesmo o enxerga. Neste ponto eu vejo um claro paralelo com um fenômeno comum: a capacidade do ser humano de ignorar o que considera estar “abaixo” de si, socialmente falando. Não à toa os habitantes da Londres Abaixo tem uma aparência pouco asseada, vestindo trajes que, no mais das vezes, combinam peças de diferentes cores, tamanhos e estilos. Em suma, mendigos.

E não me surpreendeu que Richard tenha adquirido a mesma “capacidade” dos outros habitantes da cidade subterrânea, pois já vinha de uma existência apagada. É o tipo “mané”, aquele boboca que ninguém ajuda, mas que vive tendo que trabalhar em dobro pra suprir as falhas de colegas que são menos cobrados – e, muito por causa do trabalho dele, mais bem-sucedidos – do que ele. Todo mundo fala com Mayhew “de cima” e se sente à vontade para criticá-lo e/ou aconselhá-lo até em aspectos íntimos. Sua noiva o domina completamente, chegando a roteirizar o que ele deve conversar à mesa durante um jantar com o chefe dela (descendo à detalhes do tipo combinar sinais para Richard saber se deve rir ou não de um determinado comentário), ao mesmo tempo em que é incapaz de qualquer gesto de carinho, mesmo tocar nele enquanto andam na rua.

É para esta vida – e para esta mulher – que o nosso herói quer voltar. Por quê? A resposta pode estar no que ele diz em determinado momento:
“Acho que o que me atraiu na Jess foi o fato de ela ser tão decidida. Deixar de tomar decisões sempre foi minha opção favorita.”
Eu sei que o(a) leitor(a) com certeza reconheceu alguém aqui. Espero, sinceramente, que não tenha se identificado. Mas, ainda que não, tenho certeza que – como você é um cara ou uma guria gente boa – já teve seus dias assim. Porque estamos em um mundo de aparências, um lugar onde a pessoa de bem é pega em arapucas e faz coisas que irão gerar créditos imerecidos para outras. E, sim, muitas vezes nos acomodamos numa espécie de não-existência (da mesma forma que muitos buscam o conforto da ignorância), trabalhando calado e fazendo de tudo para que os outros não prestem atenção na gente enquanto contamos os minutos para o fim do expediente e os anos para a aposentadoria.
Mas vamos acreditar que, sim, há um grande papel reservado para cada um e que devemos desempenhá-lo da melhor forma possível, ainda que a grande massa que não se importa com a gente – e cuja opinião, por incrível que pareça, damos grande importância – jamais irá nos agradecer.
